O trabalho, a técnica, o tempo

A sequência de imagens em preto e branco aqui apresentada foi selecionada do acervo de mais de 4 mil fotos e filmes doados pela família de Waldemar Anacleto ao Núcleo de Estudos sobre Transformações no Mundo do Trabalho (TMT), da Universidade Federal de Santa Catarina. Os critérios adotados para a escolha de fração tão reduzida do acervo devem ser compartilhados.

As imagens no arquivo do TMT refletem o trabalho de uma vida inteira dedicada a registrar, através da fotografia, um período de tempo extenso, de mais de três décadas. São registros pessoais, mas, sobretudo, institucionais, uma vez que Waldemar Anacleto era funcionário do Estado de Santa Catarina, o que o levou a realizar registros públicos de um momento político e econômico marcante na história do estado e do país, entre os anos 1950 e 1970. Além da esfera público-política, Anacleto voltou suas lentes para o universo, cenário e personagens, do trabalho, cerne dessa mostra.

A obra de Anacleto divide-se em dois períodos distintos: em um primeiro momento, as imagens são quadradas e em preto e branco, formato amplo, imposto pela câmera padrão do fotojornalismo mundo afora na época, a mítica Rolleiflex. A partir do final dos anos 1960 e acompanhando a marcha global do fotojornalismo, Anacleto migra para o portátil e retangular 35mm e para a avassaladora imposição da cor na fotografia.

Essa migração revela-se um divisor de momentos, especialmente do ponto de vista técnico. Após um longo período refinando um olhar em preto e branco, a cor confere outro perfil às imagens por ele produzidas, criando a princípio um nítido desconforto. Mas foi a troca de formatos o que mais afetou o seu fazer fotográfico, distanciando-o do período inicial em preto e branco. Em primeiro lugar, o formato maior em 6×6 da fase inicial de Anacleto era mais qualitativo que o 35mm pelo simples fato de o negativo ser quase quatro vezes maior em área. Além disso, a simplicidade de construção da Rolleiflex, com apenas uma lente e formato quadrado, permitia ao fotógrafo operar com mais simplicidade e fluência. Não havia a preocupação de a imagem ser vertical ou horizontal; a não intercambiabilidade das lentes facilitava a adaptação do olhar do fotógrafo àquela distância focal específica, permitindo uma pré-visualização mais acurada e um resultado mais previsível. A câmera 35mm, em contrapartida, oferecia um visor à altura do olho, ao contrário do visor na altura da cintura da 6×6, pontos de vista completamente diferentes para a tomada das fotografias; a possibilidade de trocar as lentes, que a princípio era tida como uma vantagem, terminou por ser um incômodo, por excesso de flexibilidade. Por fim, ter que escolher uma orientação para a foto também roubou muito da fluência da fase inicial do trabalho de Anacleto. O resultado é que as imagens em 35mm coloridas desse fotógrafo são quase todas tomadas com uma única lente, a 50mm “normal”, e horizontais na sua ampla maioria. A cor, no fim das contas, foi forçosamente adotada com o passar do tempo. O melhor trabalho de Waldemar Anacleto encontra-se, portanto, na primeira fase, quando teve sua câmera, como afirmou Cartier-Bresson, alinhada com a sua mente, seu olho e seu coração.

É desse período que é composta esta exposição. É a fase mais produtiva, criativa e estética de Anacleto, um homem nascido em um mundo desde sempre visto em preto e branco. Do ponto de vista técnico, havia uma homogeneidade universal: todos os profissionais tinham basicamente o mesmo equipamento, restando ao fotógrafo poucas variáveis diferenciais, sendo o olhar a mais arguta de todas. Nisso Anacleto se distinguiu dos seus pares, com uma visão direta e sem rebuscamento, como na straight photography norte-americana. O resultado é um conjunto visualmente eloquente, uma narrativa que contribui para elucidar o universo pouco documentado das transformações no mundo do trabalho em Santa Catarina, sobretudo durante os anos 1960, quando a industrialização e a urbanização combinaram-se fortemente.

As fotografias dessa mostra não apresentam uniformidade quanto aos procedimentos técnicos. Apesar de terem sido feitas pelo mesmo fotógrafo e com a mesma câmera, a conduta laboratorial é bastante diversa e a película adotada para os registros nem sempre foi a mesma, criando, dessa forma, resultados bastante díspares no que diz respeito à densidade e à escala tonal. Esses resultados refletem o fotojornalismo da época, em que era natural reutilizar os químicos algumas vezes por questões de economia e compensar essas deficiências na ampliação, utilizando-se papéis de contrastes diferentes para contrabalançar eventuais oscilações de densidade. O momento e o acontecimento cristalizados pela imagem era o que pesava mais (e até hoje é assim). Outro procedimento bastante corriqueiro no fotojornalismo é o recorte da imagem. Aqui optamos por imprimi-la integralmente, sem nenhum tipo de corte, preservando o formato quadrado da câmera, desvelando, assim, o enquadramento original feito pelo fotógrafo.

O recente avanço das tecnologias digitais permitiu a recuperação de fotografias a partir de suas matrizes, os negativos. As cópias desta exposição se beneficiaram desse avanço e foram produzidas com escaneamento, tratamento e saídas digitais. Essa tecnologia permitiu a recuperação das fotografias em sua plenitude, com toda a sua tonalidade, superando em qualidade o método original para o qual esses negativos foram produzidos. Primeiro os negativos foram escaneados em altíssima resolução. Em seguida, as imagens foram tratadas digitalmente para a remoção de poeira, riscos e arranhões, um grande trabalho de restauro para, a seguir, terem recuperada a sua gama tonal através de ajustes de brilho e contraste. As cópias finais foram impressas com tintas de permanência no papel Edition, da Canson, cem por cento algodão, e finalizadas em molduras adequadas para a sua máxima preservação e permanência. Ao optarmos por trabalhar assim tais imagens, podemos afirmar que a qualidade das cópias aqui apresentadas extrapola em muito as originais, uma vez que a tecnologia digital contemporânea permite uma equalização de resultados outrora praticamente impossível.

A exposição está organizada em três conjuntos de imagens. O primeiro mostra o trabalhador em si, isolado em sua atividade, em pleno exercício do seu trabalho. É notória a ciência do fotografado da presença do fotógrafo. Não é possível medir a extensão do arranjo e da intervenção no contexto, nem sequer se ela ocorreu, mas é importante mencionar a nuance no ato fotográfico relacionada à possibilidade da pose.

Há, a seguir, um ponto intermediário, no qual o trabalhador é mostrado no seu âmbito de trabalho, seu métier. Nesse portfolio, vê-se mais do ambiente onde o trabalho era exercido, muitas vezes junto a outras pessoas. Aqui o mundo em que Anacleto transitava começa a criar forma, em especial através de personagens coadjuvantes que ilustram uma época inteira. É assim também na imagem do trabalhador informal, um camelô na esquina das ruas Trajano e Felipe Schmidt. A paisagem humana dos anos 1950 na Capital é bem tipificada pelas pessoas que povoam a imagem, todos homens (da única mulher, só se vê a nuca), de várias idades, com as indumentárias carregando as marcas do tempo.

Nessa escala do particular rumo ao geral, o último portfolio nos apresenta um grupo de imagens que representa o contexto em que o trabalho se dava. Aqui o observador atento consegue compreender um pouco mais do cosmos que Anacleto perscrutava com sua câmera. É assim especialmente nas fotografias dos professores, seja na imagem no recreio (claramente um instantâneo) ou na saída da escola (evidentemente arranjada). A escola despontava como o espaço para o disciplinamento da força de trabalho. É assim também nos lugares sociais emergentes daquela época: o supermercado, a indústria.

O conjunto convida a reflexões sobre a conversão de artesãos em operários, a implantação das linhas de produção, o surgimento de uma sociedade de massas em Santa Catarina – temas tratados detalhadamente no texto da professora Bernardete Wrublevski Aued, neste catálogo.

A própria obra de Anacleto é atravessada pelas mudanças que ele fotografa; também nele a tecnologia impôs um novo padrão de trabalho, afetando seu olhar. Aqui, podemos ver o fotógrafo em sua configuração primeira, confortável no domínio da técnica com a qual aprendeu a trabalhar. Em outras mostras, será possível exibir o momento posterior, carregado das marcas da nova tecnologia.

 

Álvaro de Azevedo Diaz

Fotógrafo, professor de fotografia, curador da exposição “Imagens da mudança: trabalhadores de Santa Catarina no acervo de Waldemar Anacleto”

 Jacques Mick

Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC, coordenador do projeto de extensão “Imagens da mudança: visibilidade para o acervo fotográfico do TMT”

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