As “mãos hábeis” e o trabalho que desaparece

O Núcleo de Estudos Sobre as Transformações no Mundo do Trabalho (TMT), vinculado aos Programas de Pós-Graduação de Sociologia Política e de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis (SC), lança a exposição “Imagens da mudança: trabalhadores de Santa Catarina no acervo de Waldemar Anacleto”, com fotos de aspectos relevantes do ambiente de trabalho e de profissionais em território catarinense no final da década de 1960.

Todas as imagens integram o acervo formado por parte importante da obra do fotógrafo, cedida ao TMT por Maria de Lourdes Vieira Anacleto e catalogado para pesquisa. Mais de 4.100 cópias, slides, filmes e negativos produzidos entre o final da década de 1950 e o início de 1970 compõem esse acervo. São registros de municípios importantes do estado de Santa Catarina (como Joinville, Blumenau, Brusque, São Bento do Sul, Florianópolis, São Pedro de Alcântara) e referem-se a temas como trabalho, indústrias, profissões, religiões, paisagens, cidades e políticos. Uma visita de Juscelino Kubitschek a Santa Catarina e momentos significativos dos governos de Antônio Carlos Konder Reis e Jorge Bornhausen estão entre as imagens cedidas.

 

EXPOSIÇÕES: A MEMÓRIA QUE PROJETA O FUTURO

 Aqui se trabalha construindo o desenvolvimento com braços de homens e de mulheres fortes [1]

Partes da obra de Anacleto foram apresentadas ao público em duas ocasiões, dentro e fora do Brasil. Em 1970, o próprio Waldemar organizou uma exposição, com o objetivo de demonstrar os avanços da industrialização e as belezas da paisagem em Santa Catarina. O Estado, na década de 1960, vive uma virada industrializante, decisiva, que vai consolidar-se nas décadas subsequentes, acompanhando a virada, dos anos 1950-1960, proposta pelo governo de Juscelino Kubitschek (1956 -1960) no “Plano de Metas”, que pretendia fazer com que o Brasil se desenvolvesse cinquenta anos em cinco. A orientação política desenvolvimentista aspirava à modernização nacional, por meio da criação de infraestrutura e da industrialização. As multinacionais – primeiramente, as pertencentes à indústria automobilística – foram incentivadas a se instalar no País.

A exposição de fotografias, em preto e branco, em grandes painéis de 1m x 1m, ocorreu concomitante com outra, de slides sonorizados apresentados por meio de um aparelho feito pelo próprio fotógrafo. A ‘engenhoca’, como ele mesmo chamou, era composta de peças de máquina de moer carne e de bicicleta, adaptadas para imitar um retroprojetor francês que minimizava o tempo de troca entre um slide e outro, mesclando imagens. A criação, que lhe valeu muitos elogios, foi, mais tarde, substituída por um ‘moderno’ retroprojetor.

A exposição circulou fora do Estado e teve momentos marcantes no Rio de Janeiro (RJ) e em Gramado (RS). Também foi ao exterior, como na Alemanha, e contribuiu para demonstrar como os imigrantes de origem alemã “construíam fábricas e plantavam flores” [2] no espaço catarinense. Dois incidentes dizimaram a iniciativa. Um acidente automobilístico, no retorno da exposição do Rio de Janeiro para Florianópolis, destruiu os painéis. O outro acidente foi mais trágico: um incêndio numa alfaiataria contígua ao laboratório fotográfico de Waldemar Anacleto desfalcou o acervo e inviabilizou refazer a exposição, uma vez que a água utilizada pelos bombeiros destruiu boa parte dos negativos. Ainda assim, restaram muitas fotografias, negativos e slides.

Em 1999, fotos de Anacleto sobre trabalhadores, parte delas localizada nos arquivos do Foto Anacleto, serviram de ponto de partida para a exposição “Memórias de Profissões em Santa Catarina”, promovida pelo TMT, lançada no salão da reitoria da UFSC e exibida em alguns municípios do Estado. Poucas décadas depois de fotografados, muitos dos contextos e atividades profissionais retratados por Anacleto não mais existiam. As imagens selecionadas na exposição de 1999 tratavam de ofícios manuais cada vez mais raros nos dias atuais. Dos retratos de profissionais que compunham a ‘modernidade industrializante’ catarinense, nos anos sessenta, somente restavam lembranças.

A exposição de 1999 não exaltava o advento da ‘modernidade industrializante’ dos trabalhadores das “mãos habilidosas”, isto é, imigrantes e brasileiros que haviam sido atraídos para o trabalho manual fabril, em ascensão, no Estado. Uma parte significativa destes profissionais, provavelmente, adquirira habilitação por meio da relação mestre-aprendiz, dentro de uma oficina. Com as mudanças desencadeadas no mundo do trabalho, emergiam outros traços dos trabalhadores:

  • o aprendizado ao trabalho passa a ser adquirido dentro do sistema escolar, não mais por meio da relação mestre-aprendiz;
  • o processo de produção e de trabalho deixa de ser gerido pelo próprio produtor;
  • advêm outras necessidades dos trabalhadores, como a organização na forma de sindicato ou de associação estabelecendo regras, normas de conduta e construção da identidade profissional coletiva.

O aspecto tradicional ou folclórico de alguns empregos não deve nos iludir. Mais do que prosaicas, e certamente mais numerosas do que imaginamos, algumas “velhas” profissões ainda fazem parte das nossas relações. Desta lista fazem parte não só os alfaiates, mas os sapateiros, os confeccionadores de sombrinhas e de guarda-chuvas, os tecelões, afiadores de facas, as costureiras, os mecânicos de automóveis, os consertadores de rádio, televisão, bicicleta e os confeccionadores de chaves, entre outros.

Contemplar, ver e pensar são ações interconexas e historicamente inseparáveis. Descrevem a realidade não exatamente como um espelho, porém como uma interpretação daquilo que compõe o presente e o que poderia ser o futuro. Expor fotografias acerca do mundo do trabalho é ampliar o conhecimento sobre a forma de produção de nossas existências, de como é impossível a produção individual. Tudo o que nos cerca é resultado de produção coletiva. Portanto, mostrar as situações profissionais em vias de desaparecimento ou extintas não resulta em olhar para tais profissionais com nostalgia, nem com saudade de tempos que estão se indo ou que se foram. Nossos olhos acerca do mundo do trabalho nada têm “de admiração do tempo que foi”, mas, ao contrário, dirige-se à sociedade atual, que se alicerça no passado e contém os germes da sociedade futura. No mundo dos homens, o presente engendra o futuro.

 

“Imagens da mudança: trabalhadores de Santa Catarina no acervo de Waldemar Anacleto”

A exposição atual destaca fotos de cotidiano, de capacitação da força de trabalho e de algumas habilidades, ou seja, pessoas de “mãos hábeis” inseridas no mundo do trabalho manual e fabril. Muitas imagens enchem d’água os olhos do observador, pois tudo o que resta é a lembrança de tempos e de contextos de trabalho que não existem mais. É de chamar a atenção, no entanto, que a defesa do trabalho manual como valor pedagógico ocorra na atualidade, quando a vida se pauta pela aplicação consciente da ciência. O artesanato, que se nutriu da pedagogia do aprender fazendo, a qual se passava de pai para filho ou de mestre para aprendiz, pertence, rigorosa e historicamente, ao tempo de organizações que receberam vários nomes: Guildas, na Inglaterra e Alemanha; Métiers, na França; Artes, na Itália, entre outros (RUGIU, 1998: 8).

O observador vai perceber que algumas imagens revelam singularidades do trabalho em Santa Catarina, revelações do “instante decisivo” imortalizado por Cartier-Bresson (Folha de S. Paulo, 2009: 5, volume 1) ao qual jamais alguém fica imune. Neste sentido ela é mediação que auxilia a interpretação da realidade em movimento continuum, pleno de significados e de questões relacionadas ao trabalho atual que vem se transformando dia por dia.

O que mudou na vida dos trabalhadores e no trabalho a partir das recentes transformações tecnológicas? O que persiste? Uma, entre muitas significações possíveis, pode ser percebida por meio da mudança nos processos de trabalho. O trabalhador artesanal que ocupou boa parte da sua vida na “lida” com ferramentas manuais, tal como os seus ancestrais, transformou-se. Evidentemente, para responder a essa complexa questão, a análise fotográfica é insuficiente e necessita de complementações impossíveis sem o ‘terceiro olho’[3]. E o que é o terceiro olho? Imagine um cego fotografando. Pesquisar com o ‘terceiro olho’ é ir além da aparência, é ler nas entrelinhas, é perceber as silhuetas na neblina, como o fez Eugène Bovcar. Ter o ‘terceiro olho’, conforme sugere a metáfora, é uma rara qualidade entre os pesquisadores. No filme documentário ‘Janela da alma’, há um cego que fotografa, corroborando com a idéia de que, de fato, precisamos mais do que dos olhos para ver.

Para ver, acionamos todo o nosso código de cultura, nossas emoções e sentimentos, assim como também as experiências pretéritas acumuladas. O que é aparentemente uma simples coletânea de fotografias é transcendência. Melhor seria dizer que é inscrever trabalhadores numa determinada história. Desta feita, a exposição tem o intuito de ampliar a reflexão. A fotografia que, em geral, não é feita ao acaso é uma referência, um ponto de partida para a reflexão, jamais o final do trabalho. A fotografia é um meio que permite a construção da interpretação e, mesmo, a sua teorização. Ela também contribui para inscrever personagens sociais numa determinada temporalidade, articulando passado, presente e futuro. O olhar constrói a foto, e esse trabalho realiza-se por meio de categorias históricas.

Como num teatro, é fundamental retermos o desempenho dos personagens sociais que trabalham. O ator empresta a vida ao personagem, o qual, por sua vez, exige que ele mergulhe inteiramente no papel. No palco, discernir ator e personagem é tarefa difícil. De forma semelhante, o mesmo raciocínio aplica-se às relações sociais. Elas não são feitas de aço, ainda que assim pareçam, mas de atos instituídos no coletivo, e a ciência social denomina-as como relações de poder. Ao expressar em letras o mundo social, o intérprete, com este ato, cria uma ordem categorial como sugere Ciavatta: a fotografia é mais o resultado de uma construção histórica produzida mediante o desenvolvimento técnico, do que o resultado de um processo físico-químico entre imagem e o referente (2002: 28).

A fotografia pode se constituir em mediação para a superação do presente, todavia, não pode atuar sozinha. Essa invenção, precursora dos instrumentos mediáticos modernos, coloca-nos na condição de fazer parte do mundo fotografado, poder olhá-lo e indagar: de que mundo faço parte? Dessa feita, a fotografia é um instrumento de combate. Nada pode ser mais subversivo que a imprevisível e inesgotável matéria. A sociedade que está dominada por inúmeros mediadores, contém, também, as formas da rebeldia, aquilo que a faz avançar. Existem coisas feitas pelas mãos dos homens e das mulheres que, em relação com estes mesmos homens e mulheres, se traduzem em uma indiferença altiva e uma cumplicidade muda como se fossem coisas da natureza.

Nas imagens interessam-nos os seus desafios. Ela sacode aquele que vê! As manifestações podem variar quanto à maneira, mas com segurança ninguém sai indiferente. A fotografia é uma estranha invenção que, ao invés de nos levar a contemplar o mundo, nos lança questões. Oxalá, esta exposição suscite reações alentadoras ou, até mesmo, indignações e, principalmente, lutas que coloquem um ponto final às manifestações de trabalho explorado. Ou, como sugere o fotógrafo Alberto Korda (1997: 14), ao ver uma criança brincando com um pedaço de pau como se fosse uma boneca: nesse momento ele se convenceu de que deveria dedicar o seu trabalho “a uma revolução que transformasse essas desigualdades”.

As fotografias de Waldemar Anacleto registram o tempo das fábricas com muitas pessoas trabalhando, na era da revolução industrial. Um tempo de mãos hábeis, de mestres e aprendizes e profissionais como fiandeiras, costureiras e bordadeiras, entre outras que labutaram pela sobrevivência e com as próprias mãos e com a força do corpo. Tempo da grande fábrica, do trabalho assalariado, com direitos, com jornada de trabalho definida e férias. Mas tudo anda tão acelerado que é como se tivesse sido sempre tal como hoje. Ninguém mais precisa encomendar ternos no alfaiate ou vestidos na costureira. Basta ir ao shopping center. Muitos mal conseguem se lembrar de como o mundo outrora era diferente, o que nos faz pensar: então houve um tempo que não era assim?

As imagens de Anacleto retêm cenas do “chão da fábrica” mil vezes transmutado. A fábrica com muitas pessoas trabalhando cedeu lugar à indústria fragmentada da facção e do retorno ao trabalho em domicílio. Amplia-se o trabalho, mas não o assalariamento. Em Brusque, Joinville ou Blumenau, o que vemos deixa-nos apreensivos quanto ao futuro. Na indústria de malhas não se tece mais o fio e nem se confecciona a malha. Numa situação semelhante ao que vive o bancário, o tecelão vive a iminência do fechamento de seu posto de trabalho fabril. As grandes fábricas ‘enxugam’ a planta e eliminam postos de trabalho. O desenhista, uma importante atividade que marcou a indústria ascendente, atualmente tem sido substituído pelo projetista habilitado em linguagem informacional.

Esse é o resultado de um complexo processo de mudança e mantém poucas conexões com uma qualificação profissional inadequada ou insuficiente. Ao contrário, em quase todos os postos de trabalho, eles eram qualificados. A estruturação produtiva que se impôs nos anos subsequentes eliminou postos de trabalho no interior do emprego industrial. Uma certa proporção deste enxugamento é conhecida como “reengenharia” ou, também, como mudança na forma de organização do trabalho. Os trabalhadores das ‘mãos hábeis’ ficaram desempregados e mudanças de toda ordem se instalaram: alguns mudaram de cidade, de bairro e, até mesmo, de profissão.

As metamorfoses do mundo do trabalho são expressões materiais da produção da vida, a qual – em cada momento da história e geração após geração – corresponde à produção da vivência cotidiana do comer, beber, vestir, da produção de novas necessidades, da reprodução social, da cooperação e da consciência como aspectos constitutivos do desenvolvimento da história da humanidade. As metamorfoses do mundo do trabalho revelam necessidades sociais. Não são os instrumentos de trabalho que descartam as pessoas; são as pessoas que descartam as pessoas. As pessoas, na luta para assegurar a sua sobrevivência, inventam instrumentos de trabalho que se podem voltar contra elas próprias. O escravismo foi extinto por pessoas que não conseguiam mais viver sob esta situação.

Em contrapartida às novas formas de industrialização, observamos o aumento dos serviços, desde os mais sofisticados até os mais personalizados cujos nomes, em inglês, mascaram a condição do retorno do trabalho doméstico. Para acompanhante individual, o “personal trainning”; para o trabalho em domicílio, o “home working”, como se o nome, em inglês, mudasse o conteúdo do enorme retrocesso do autoemprego e, na maioria das vezes, da ausência de horário de trabalho delimitado e de direitos trabalhistas. Esta é praticamente uma tendência mundial de “concentração do capital” (OLIVEIRA, 2003: 10) Ou, ainda, dizendo de outro modo, a reestruturação é a maneira técnica em que se realiza o aumento do capital e de produtividade do trabalho.

            De certa maneira, essa exposição é uma elegia ao desaparecimento rápido de formas tradicionais de trabalho e de profissão. Mas, livre de melancolia, é também um apelo esperançoso, para que a humanidade possa compreender melhor o que está ocorrendo a sua volta e que possa lutar. Nem tudo é mudança, nem toda mudança é para melhor, há forças conservadoras que tudo fazem para permanecer como está. Criar um mundo novo, imaginar que existe uma vida nova, perceber que existe um limite, delinear, com as mãos, o mundo novo, sonhar, ousar sonhar que o mundo pode ser diferente.

A propósito, quais são as novas profissões e respectivas tecnologias que já são obsoletas? Quais os profissionais que se perpetuam na atualidade? Quais são os pressupostos que justificam e orientam a conexão trabalho e educação e as profissões do futuro?

 

Bernardete Wrublevski Aued

Professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC (aposentada)
Criadora do Núcleo de Estudos sobre as Transformações no Mundo do Trabalho (TMT)

 


[1] Frase retirada da trilha sonora que acompanhava a exposição de 1970. Acervo fonográfico cedido por Waldemar Anacleto a Bernardete Wrublevski Aued.

[2] Idem

[3] Idéia desenvolvida no filme de jardim, J. e Carvalho, W. A janela da alma, 2002.


Referências

AUED, B. W. Histórias de Profissões em Santa Catarina. Florianópolis: Palotti, 1999. 120p.
BAILHÉ, C. Métiers d’autrefois. Paris, Milan, 1986. 179 p.
BERROUET, L. LAURENDON, G. Métiers oubliés de Paris. Paris, Parigramme. 1998. 159 p.
BERTI, L. Et alli. Les Offices. Londres: Scala Publication. 1997. 224 p.
BERTI, L. Los Uffizi. Milão: Becocci. S/d. 144 p.
CARTIER-BRESSON. Coleção Folha Grandes Fotógrafos. São Paulo: Sol 90 LTDA, 2009, volume 1. 31 p.
CIAVATTA, M. O mundo do trabalho em imagens. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2002. 140 p.
jardim, J. e Carvalho, W. A janela da alma, 2002. (filme)
KORDA, A. Diario de uma revolución. Havana: Aurelia,1997. 77 p.
OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista. O Ornitorrinco. São Paulo, Boitempo, 2003. 150 p.
RUGIU, A. S. Nostalgia do mestre aprendiz. São Paulo: Autores Associados, 2003. 150 p.

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